Muniz Sodré*
Corporeidade é a condição própria da sensível, tal como na experiência afro, em que o sentir é a comunicação original com o mundo, é o ser no mundo como corpo vivo. O sentir é o modo de presença na totalidade simultânea das coisas e dos seres, é o corpo humano enquanto compreensão primordial do mundo. Por sua vez, a dança como integração rítmica do movimento ao espaço e ao tempo, cria ou “inventa” as ações a partir do fluxo temporal do imaginário coletivo e, deste modo, produz um agir autônomo do dançarino.
Não se traduz nem se explica a dança –– ou seja, ela não é um duplo do teatro, da mímica, da literatura ou da história ––, pois a ação do dançarino é projetiva, induzindo a uma experiência não redutível ao conceito. São infinitas as possibilidades criativas da dança.
Trata-se de expor a função mediadora do corpo e da dança na estruturação social de gêneros musicais que têm permanecido como chaves da resiliência cultural afro em territórios da diáspora, a exemplo, do Brasil e dos Estados Unidos.
Nessa contextualização cultural, todos nós sabemos da relevância do samba e do blues.
O samba e o blues são paradoxalmente alegres.
Por isso, é conceitualmente essencial a questão da alegria. Mas também a questão da sinestesia, que permeia desde o campo ótico proprioceptivo (excitações do nervo ótico, imagens da memória, do sonho) até o campo das imagens sonoras.
Imagens sonoras não são apenas extralinguísticas, são também extramusicais. Consideramos sugestiva a ideia de uma “antropologia sonora” capaz de constituir um campo de correspondências entre música e realidade a partir de representações dançadas em que se possa descrever movimentos lentos, fluentes, periféricos, centrífugos e outros.
Existe uma ponte sólida entre a música e a realidade extramusical. Essa ponte é a corporeidade, na modalidade da dança, do corpo que dança.
O que queremos dizer com “corpo”? Corpo não é o mesmo que carne humana. A ideia originária (grega) de corpo –– soma –– é a ideia de um habitáculo de forças, que pode se expandir ou diminuir. Há o corpo inerte e o corpo em movimento, racionalizados pela cultura do consumo. Mas além desses, há em culturas tradicionais o “si mesmo” corporal, que consiste na sua potência afetiva de ação, na dimensão tácita, e não-verbal, de seu funcionamento.
Pensar um “si mesmo corporal” implica rejeitar abrir-se para a ideia de uma dimensão própria à mecânica inteligente dos movimentos físicos. O si mesmo corporal –– em que o instinto é figurado como um “centro de interpretação” –– dá margem à noção de corporeidade. É uma noção de coletividade. Corporeidade não se refere à substância da carne humana como uma entidade pessoal ou individual, mas como uma “máquina” de conexão das intensidades num plano imanente ao grupo.
Num sujeito coletivo, como é o caso do grupo, corporeidade é a coleção dos atributos de potência e ação, diferente dos atributos individuais. Pela corporeidade o ritmo cria um espaço próprio e suscita um imaginário específico, o que implica uma reflexão prática, corporal, sobre a duração. A dança constitui um contexto, uma espécie de “lugar”, ou de cenário sinestésico e sinergético, onde ritualisticamente algo acontece.
Dança é soberania do espírito e mediação entre a música e o mundo.
*Muniz Sodré estudou Ciências Jurídicas e Sociais na Universidade Federal da Bahia, da qual recebeu o título de Doutor Honoris Causa. Tem Mestrado em Sociologia da Informação (Paris-II, Sorbonne), Doutorado em Letras (UFRJ) e Pós-Doutorado em Sociologia e Antropologia (École Pratique des Hautes Études en Sciences Sociales – Paris). Em 2012, tornou-se Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É pesquisador 1-A do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas (CNPq).
Tem 36 livros publicados sobre comunicação, cultura e ficção, entre estre destaco “Samba o Dono do Corpo”, “A Sociedade Incivil –– mídia, iliberalismo e finanças”, e “O Terreiro e a Cidade: a Forma Social Negro-brasileira”.